Prostituta por seis encarnações sucessivas.
Eu fui uma prostituta em seis encarnações sucessivas. A primeira foi num navio pirata. Apanharam-me numa razia contra nossa cidadezinha na orla do Mediterrâneo; com o saque e outros cativos, embarcaram-me numa caravela. Eu era jovem e bonita. Um dia, o comandante atraiu-me para o seu camarote. Percebi-lhe a intenção. Eu já tinha os meus planos, e antes que ele tomasse a iniciativa, adiantei-me: Saiba que sou uma virgem. Quanto dá por minha virgindade? Dirigiu-se a uma das arcas ao pé do leito, abriu-a; estava cheia de jóias preciosas, produto de pilhagens. Colocou um punhado delas sobre a mesinha à minha frente. É pouco, disse-lhe com firmeza. Mergulhou ambas as mãos na arca, e pô-las sobre as primeiras. É o bastante.
Ainda por muitas vezes lhe arranquei peças de valor. Logo que o notei farto de mim, entreguei-me aos outros marujos, a troco de ouro, que todos possuíam. Desembarquei em porto europeu, rica, e dediquei-me ao meretrício de alto luxo.
Vejo-me agora reencarnada na França, na época do I Império. Sou dama da corte. E, para obter honrarias, jóias, luxo, prostitui-me não abertamente, mas entregando-me aos cortesãos que servissem aos meus intentos.
A terceira reencarnação foi em Portugal. Casei-me com um caixeiro modesto em pequena cidade portuguesa. Abandonei-o e transferi-me para Lisboa, onde montei casa de tolerância, desgraçando mocinhas ingênuas, e desencaminhando pais de família.
Na minha quarta reencarnação, ainda em Portugal, não me sujeitando a uma pobreza digna, tão logo me emancipei, comercializei o meu corpo. E, por isso, a minha mãe finou-se de desgosto. Como cobra venenosa, atraía a mocidade da nobreza, sugando-lhe impiedosamente os haveres e até a honra, em luxuoso prostíbulo no Rio de Janeiro, no tempo do império.
Na minha quinta reencarnação, no início do século XX, ainda no Rio, aos 14 anos já me envolvia no meretrício. De nada me adiantavam os intervalos de minhas reencarnações. Não dava ouvidos a espíritos benévolos que me queriam afastar dessa vida imunda. Endurecida no vício, filiava-me a grupos de obsessores sexuais, e praticava desatinos vampirescos com encarnados que aceitavam minhas sugestões.
Até que engenheiros maternais decidiram aplicar-me a corrigenda cabível. Estudaram minuciosamente o meu passado, submeteram-me a rigoroso exame psíquico, e concluíram que só havia um remédio para mim, posto que amargo: reencarnar em corpo masculino, tantas vezes quantas as necessárias. A petição seguiu para instância superior e foi aprovada.
E eu, mulher, espírito essencialmente feminino, reencarnei-me em corpo de homem, no Rio de Janeiro, como quarto e último filho de um casal da classe média, remediados.
Hoje sei dos motivos que teve este casal para me receber como filho; porém, não vem ao caso mencioná-lo. Bem cedo começaram os meus martírios. Eu adorava brincar com meninas, evitava os meninos. Na escola ouvia os ditérios dos colegas; e ao ir ao quadro dar a lição, a classe ria-se ante o meu andar feminil. Durante o recreio, escondia-me. Com a idade, mais se acentuou minha inclinação feminina: parava diante das vitrinas de modas e das de jóias, e extasiava-me a admirar os vestidos, os sapatos, as meias, os colares, os brincos, os braceletes, tudo, enfim que pertencesse à toilette da mulher. Por vezes, ansiava ir à cabeleireira maquiar-me, e a custo reprimia-me. O meu pai não me aceitava; os meus irmãos detestavam-me e repeliam-me; a minha mãe, pobrezinha, era o meu único refúgio. Consolava-me, acariciava-me, infundia-me ânimo, abraçava-me.
A solidão embrulhou-me no seu pesado manto. Certa vez, atraído por um homem, fui com ele ao seu apartamento. O horror, o nojo que isto me causou vós não podeis imaginar. Quis tornar-me seu amante; tive dificuldades em livrar-me dele. Para vós terdes uma ideia do meu suplício de espírito feminino num corpo masculino, faço uma comparação: havia outrora um instrumento de tortura, que consistia numa caixa de ferro, mais ou menos no formato de um homem, em cuja porta, do lado de dentro, se engastavam punhais. O condenado era encaixado nessa caixa, e nela ficava por dias e dias à espera que o carrasco recebesse ordem de fechar a porta, quando era trespassado pelas lâminas. Todavia, raramente o corpo do condenado se amoldava à caixa; e então os verdugos o ajustavam à força naquele aparelho, no qual com corpo horrivelmente comprimido, aguardava o fechar da porta, cessando o seu tormento. O condenado à tortura da máscara era mais feliz do que eu: o sofrimento dele durava poucos dias; o meu durou 68 anos, que se arrastaram como uma eternidade.
Jamais me passou pela cabeça a ideia do suicídio, ou de me prostituir, felizmente. Aguentei firme o rojão, como se diz popularmente.
Uma tarde, de volta a casa, um grupinho de estudantes vadios pôs-se a chacotear-me. Para fugir deles, entrei na primeira porta que vi aberta; subi pequena escada, e achei-me num vasto salão; muitas pessoas lá estavam; sentei-me entre elas. Era a Federação Espírita Brasileira. Explicaram-me e entendi que o acaso não existe, e o fato de ali entrar é porque por certo encontraria lenitivo. Passei a frequentar aquela casa, onde conquistei muitos amigos e amigas. Os passes e a água fluidificada fizeram-me muito bem, e assim a minha solidão foi suavizada.
Eu não trabalhava; tive vários empregos, mas na ocasião, o meu problema não era tolerado como hoje em dia (embora seja uma tolerância falsa e aparente) sendo despedido de todos. Quem sempre me socorria e socorreu foi a minha mãe, fornecendo-me algum dinheiro. Os meus irmãos casaram-se; os meus pais desencarnaram. Envelheci.
Vivi penosamente de minguado benefício que me tocou por herança. Fui morar num telheiro, mal transformado em quarto, no fundo do quintal da casa de um dos meus irmãos, com ordem expressa de não me mostrar a visitas fossem quem fossem. Proibiram-me de ter intimidades com os meus sobrinhos. Mais tarde, recolheram-me a um asilo, onde desencarnei.
Acordei, não sei depois de quanto tempo, em um quarto hospitalar. Tão logo me mexi na cama acorreu uma enfermeira gentil que me disse:
— Tudo bem, minha irmã, não se impressione!
-— Irmã?... murmurei arregalando os olhos. Ela não me respondeu, mas ajeitou-me a coberta, sorrindo.
Hoje estou plenamente integrada nos meus predicados femininos.
Regenerei-me. Faço parte do Grupo de Socorros das Servas de Maria Madalena, que se dedica ao reerguimento das infelizes que resvalam pelo abismo escuro da prostituição.
- Extraído do Boletim Eletrônico n.º 258 de 1997 do GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo).
Eu fui uma prostituta em seis encarnações sucessivas. A primeira foi num navio pirata. Apanharam-me numa razia contra nossa cidadezinha na orla do Mediterrâneo; com o saque e outros cativos, embarcaram-me numa caravela. Eu era jovem e bonita. Um dia, o comandante atraiu-me para o seu camarote. Percebi-lhe a intenção. Eu já tinha os meus planos, e antes que ele tomasse a iniciativa, adiantei-me: Saiba que sou uma virgem. Quanto dá por minha virgindade? Dirigiu-se a uma das arcas ao pé do leito, abriu-a; estava cheia de jóias preciosas, produto de pilhagens. Colocou um punhado delas sobre a mesinha à minha frente. É pouco, disse-lhe com firmeza. Mergulhou ambas as mãos na arca, e pô-las sobre as primeiras. É o bastante.
Ainda por muitas vezes lhe arranquei peças de valor. Logo que o notei farto de mim, entreguei-me aos outros marujos, a troco de ouro, que todos possuíam. Desembarquei em porto europeu, rica, e dediquei-me ao meretrício de alto luxo.
Vejo-me agora reencarnada na França, na época do I Império. Sou dama da corte. E, para obter honrarias, jóias, luxo, prostitui-me não abertamente, mas entregando-me aos cortesãos que servissem aos meus intentos.
A terceira reencarnação foi em Portugal. Casei-me com um caixeiro modesto em pequena cidade portuguesa. Abandonei-o e transferi-me para Lisboa, onde montei casa de tolerância, desgraçando mocinhas ingênuas, e desencaminhando pais de família.
Na minha quarta reencarnação, ainda em Portugal, não me sujeitando a uma pobreza digna, tão logo me emancipei, comercializei o meu corpo. E, por isso, a minha mãe finou-se de desgosto. Como cobra venenosa, atraía a mocidade da nobreza, sugando-lhe impiedosamente os haveres e até a honra, em luxuoso prostíbulo no Rio de Janeiro, no tempo do império.
Na minha quinta reencarnação, no início do século XX, ainda no Rio, aos 14 anos já me envolvia no meretrício. De nada me adiantavam os intervalos de minhas reencarnações. Não dava ouvidos a espíritos benévolos que me queriam afastar dessa vida imunda. Endurecida no vício, filiava-me a grupos de obsessores sexuais, e praticava desatinos vampirescos com encarnados que aceitavam minhas sugestões.
Até que engenheiros maternais decidiram aplicar-me a corrigenda cabível. Estudaram minuciosamente o meu passado, submeteram-me a rigoroso exame psíquico, e concluíram que só havia um remédio para mim, posto que amargo: reencarnar em corpo masculino, tantas vezes quantas as necessárias. A petição seguiu para instância superior e foi aprovada.
E eu, mulher, espírito essencialmente feminino, reencarnei-me em corpo de homem, no Rio de Janeiro, como quarto e último filho de um casal da classe média, remediados.
Hoje sei dos motivos que teve este casal para me receber como filho; porém, não vem ao caso mencioná-lo. Bem cedo começaram os meus martírios. Eu adorava brincar com meninas, evitava os meninos. Na escola ouvia os ditérios dos colegas; e ao ir ao quadro dar a lição, a classe ria-se ante o meu andar feminil. Durante o recreio, escondia-me. Com a idade, mais se acentuou minha inclinação feminina: parava diante das vitrinas de modas e das de jóias, e extasiava-me a admirar os vestidos, os sapatos, as meias, os colares, os brincos, os braceletes, tudo, enfim que pertencesse à toilette da mulher. Por vezes, ansiava ir à cabeleireira maquiar-me, e a custo reprimia-me. O meu pai não me aceitava; os meus irmãos detestavam-me e repeliam-me; a minha mãe, pobrezinha, era o meu único refúgio. Consolava-me, acariciava-me, infundia-me ânimo, abraçava-me.
A solidão embrulhou-me no seu pesado manto. Certa vez, atraído por um homem, fui com ele ao seu apartamento. O horror, o nojo que isto me causou vós não podeis imaginar. Quis tornar-me seu amante; tive dificuldades em livrar-me dele. Para vós terdes uma ideia do meu suplício de espírito feminino num corpo masculino, faço uma comparação: havia outrora um instrumento de tortura, que consistia numa caixa de ferro, mais ou menos no formato de um homem, em cuja porta, do lado de dentro, se engastavam punhais. O condenado era encaixado nessa caixa, e nela ficava por dias e dias à espera que o carrasco recebesse ordem de fechar a porta, quando era trespassado pelas lâminas. Todavia, raramente o corpo do condenado se amoldava à caixa; e então os verdugos o ajustavam à força naquele aparelho, no qual com corpo horrivelmente comprimido, aguardava o fechar da porta, cessando o seu tormento. O condenado à tortura da máscara era mais feliz do que eu: o sofrimento dele durava poucos dias; o meu durou 68 anos, que se arrastaram como uma eternidade.
Jamais me passou pela cabeça a ideia do suicídio, ou de me prostituir, felizmente. Aguentei firme o rojão, como se diz popularmente.
Uma tarde, de volta a casa, um grupinho de estudantes vadios pôs-se a chacotear-me. Para fugir deles, entrei na primeira porta que vi aberta; subi pequena escada, e achei-me num vasto salão; muitas pessoas lá estavam; sentei-me entre elas. Era a Federação Espírita Brasileira. Explicaram-me e entendi que o acaso não existe, e o fato de ali entrar é porque por certo encontraria lenitivo. Passei a frequentar aquela casa, onde conquistei muitos amigos e amigas. Os passes e a água fluidificada fizeram-me muito bem, e assim a minha solidão foi suavizada.
Eu não trabalhava; tive vários empregos, mas na ocasião, o meu problema não era tolerado como hoje em dia (embora seja uma tolerância falsa e aparente) sendo despedido de todos. Quem sempre me socorria e socorreu foi a minha mãe, fornecendo-me algum dinheiro. Os meus irmãos casaram-se; os meus pais desencarnaram. Envelheci.
Vivi penosamente de minguado benefício que me tocou por herança. Fui morar num telheiro, mal transformado em quarto, no fundo do quintal da casa de um dos meus irmãos, com ordem expressa de não me mostrar a visitas fossem quem fossem. Proibiram-me de ter intimidades com os meus sobrinhos. Mais tarde, recolheram-me a um asilo, onde desencarnei.
Acordei, não sei depois de quanto tempo, em um quarto hospitalar. Tão logo me mexi na cama acorreu uma enfermeira gentil que me disse:
— Tudo bem, minha irmã, não se impressione!
-— Irmã?... murmurei arregalando os olhos. Ela não me respondeu, mas ajeitou-me a coberta, sorrindo.
Hoje estou plenamente integrada nos meus predicados femininos.
Regenerei-me. Faço parte do Grupo de Socorros das Servas de Maria Madalena, que se dedica ao reerguimento das infelizes que resvalam pelo abismo escuro da prostituição.
- Extraído do Boletim Eletrônico n.º 258 de 1997 do GEAE (Grupo de Estudos Avançados de Espiritismo).
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